Wednesday, March 29, 2006

Prólogo do Romance - A FACE OBSCURA DA VIDA


PRÓLOGO

Corpus debile


A noite revelava a face obscura da vida. As fracas lâmpadas daquela rua sinistra não escondiam a presença enlevada da morte, que teimava em rondar os fantasmas que perambulavam pelas sombras. Não existiam muitos humanos naquele lugar torpe, mas uma escória que migrava de vales inexatos, que perambulava através das trevas, procurando algum espírito para dilacerar, ou alguma fuga condenável para se esquecer de seus infernos terrenos. Restos desagregados de vícios, era somente isto naquela noite fria e úmida.
César fumava descompassado o seu cigarro. Intimamente não sabia se estava tendo uma vil alucinação, ou se realmente a brasa sorria para seu rosto pálido, que fazia brotar ligeiras marcas de suor; um suor viscoso e gélido. Frio estava o seu coração, que restabelecia mil vezes o mesmo plano de batalha. Realmente era aquilo que iria fazer, viajar para um campo de batalha, entrar em uma arena com dezenas de leões e gladiadores, e com sua tímida lâmina teria que exterminar todos os agressores que zombavam de seu rosto trêmulo. Em nenhum caso seu espírito relutou tanto; talvez tivesse medo da conseqüência de seus atos, ou da tenebrosa sensação de olhar dentro de si próprio. Em momentos conflitantes a viagem dentro da própria alma é uma atribulação considerável, pois quando o fazemos, descobrimos demônios e incertezas que nos mostram um pedaço do nosso inferno pessoal, dos nossos medos mais reclusos, e dos sonhos que se estilhaçaram durante o cair da areia do tempo; mas esta viagem guarda segredos infindos de nossa incógnita, de nossa natureza indefinida. Podemos descobrir potencialidades, dons, mistérios; ou podemos despencar ante a mais sagrada das obscuridades: o vazio da solidão, a loucura pessoal, que dorme dentro de cada um.
Não havia estrelas no céu, somente a vertigem de um sereno ritmado e sombrio. Um dos piores sentimentos humanos é a espera. César odiava ter que esperar algo. Sua natureza ativa e inconstante não o permitia viver horas num acalanto, num gorjear de pássaros, numa cadeira de balanço qualquer; queria que tudo acontecesse rápido, pois não gostava do medo, gostava de se livrar logo desta sensação, pois sabia que, se demorasse muito, aquele sentimento transformar-se-ia em pavor, como estava acontecendo. César sentia o pavor crescer dentro de suas certezas.
O pavor é bem diferente do medo. Este primeiro desperta nossas angústias, nos prendendo em nossa natureza casta, em nossos frutos infecundos, nos amedrontam e nos matam. O medo já é diferente, pois nos sentimos invadidos por um desespero que nos encoraja a cumprir qualquer tarefa, para nos livrarmos da obsessão que nos aflige; somos sacudidos até vencê-lo.
O cigarro chegara ao filtro. O cheiro ruim que desprendeu do pequeno bira fez o corpo de César tremer. Com as mãos firmes, apesar de toda a sua turbulência, retirou outro cigarro do bolso interno de seu paletó negro, que se confundia com a noite, e acendeu-o usando o toco de tabaco que restava entre seus dedos crispados de sereno. Sentiu um estremecimento. Retirou rapidamente o maço do bolso e viu que ainda restavam nove cigarros; respirou aliviado, pois se ficasse sem o sustento do seu vício, não teria onde se refugiar. Leu mecanicamente a advertência do nosso Ministério, como se quisesse fugir dos seus pensamentos: “Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando”. Um sorriso sarcástico afluiu em sua expressão séria, deixando-o mais indignado.
Soltou uma longa baforada, que se assemelhava aos espíritos da noite. A luz do poste refletida sobre ele enalteceu a figuração do sopro e pôde contemplar com uma frigidez insana a fumaça cinérea se dissipando. Caminhou onze passos em direção da escuridão, contava seu caminhar e fazia gestos frenéticos com a mão que se apoiava no cigarro. Sentiu a arma em sua cintura, e pensava em como gostaria de usá-la, para terminar de uma vez por todas com sua vingança.
Seu instinto policial flagrou-o quando olhou disfarçadamente para um mendigo que estava deitado ao lado de um empilhado de lixos. Aquele pedinte era seu amigo Carlos, seu parceiro. Em seus pensamentos tinha a sensação que tudo daria certo. Poderiam ter imprevistos, mas sua experiência e furor resolveriam tudo. Arquitetara o plano em sua insanidade, em seu momentâneo colapso da razão. Estes feitos, promovidos durante a falta da razão, geram e nutrem os planos mais miraculosos e mais violentos de espírito. Olhou de soslaio para seu amigo e recebeu um curto sinal com a mão. Não acreditava como o amigo estava deplorável, pois adorava vestir-se com fineza, sempre esbanjando sofisticação. Aquele contraste manifestava uma dose de hilaridade, apesar da apreensão. Sorriu com o canto dos lábios e observou novamente onde estava.
O asfalto negro se assemelhava a um imenso mar de lodo e devastação. As pequenas construções, as casas repletas de grades, os amontoados de entulhos, pareciam sangrar, com suas veias de concreto chorando pelas chagas herdadas de sua cidade. Aquele bairro era um dos piores daquela labiríntica cidade. O contraste com a natureza humana tornava-se bizarra. Lixos espalhados pareciam monstros que dormiam disfarçadamente, esperando que alguma vítima se aproximasse, para que pudessem dominar seus corpos e se comprazer em suas barbaridades.
César caminhou e encostou-se a um dos postes. Acendeu outro cigarro, não podia parar de fumar, tinha que se prender em algo real. Olhou para uma pequena vidraça enegrecida logo a sua frente, que se mantinha protegida por grades enferrujadas e salientes. Viu sua aparência pavorosa e determinada. Não se reconheceu, estava literalmente desfigurado; não era a culpa da escuridão ou da conclusão de seus planos, era seu espírito que relutava em acreditar na vida. Seu porte já fora mais atlético, era até mesmo invejado pelos homens da academia, quando antigamente treinava defesa pessoal e desprendia sua ira conquistada no trabalho em anilhas de vinte quilos. Seu rosto era uma mancha apagada e sinistra. Os lobos temem o que é sinistro, isto o protegia. Seus olhos negros eram filhos da noite, juntamente com seu cabelo atrapalhado e engrossado pela falta de zelo. Não dormia a várias noites, sofria de uma perseguição inexata, tornara-se amigo íntimo da solidão e da insônia. Seus lábios estavam secos e sua língua áspera teimava em tentar molhá-los um pouco, mas em vão; nem mesmo a garoa o conseguira. Se algum anjo realmente existisse, sentiria pena desta visão que César tanto odiava intimamente. Realmente ele se odiava como pai, como ser humano. Não tinha mais onde se agarrar, encontrava forças somente na filha debilitada, que precisava ser vingada. “Maldito” – este era seu pensamento.
Assustou-se quando um imenso gato atravessou o caminho, fazendo-o cambalear, deixando seu coração aos solavancos. Viu-o desaparecer sobre os imensos muros e sentiu-se preso ao chão. Quão prisioneiro se sente o homem quando se depara com a liberdade felina em meio à noite.
Ninguém ousava adentrar naquela rua, que era conhecida como beco. Somente se fosse algum traficante respeitado, como este que ele esperava, ou algum maluco que não tivesse amor à vida.
Um grupo de três jovens surgiu na esquina e caminhavam como se estivessem dançando, num ritmo horrendo. Percebia-se somente seus vultos, que cresciam juntamente com suas sombras, que eram projetadas no asfalto carcomido. Passaram diante de César e pediram fogo. O coração do policial se afligiu, tudo poderia dar errado por causa daqueles possíveis viciados. Com receio entregou o cigarro para um dos jovens, que o encarava, como se procurasse analisar sua conduta de estar em um lugar tão ignóbil. Os outros rapazes o esperavam a uns dez passos de distância. Por um momento César pensou que iria ouvir um grito de assalto, mas seu olhar era horrendo e acabou por espantar o jovem. Saiu e agradeceu com sua gíria o homem que lhe cedera a brasa. Desapareceram da mesma forma que entraram, como sombras.
César achava bom que sua aparência estivesse daquela maneira, ou seja, irreconhecível. Se alguém percebesse que era policial, estaria irremediavelmente perdido.
Passados alguns minutos surgiu do mesmo lugar aonde vieram os rapazes, um carro negro e imponente, com uma luz fraca, que iluminava o asfalto, revelando ratos que corriam para os esgotos. Em fração de segundos a mente de César viajou ao passado, revendo toda a história que o levara para aquele local envolto pelas trevas.

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